Alumni em destaque: Dennis de Oliveira analisa os protestos antirracistas

Professor e ex-aluno da Escola de Comunicações e Artes da USP, Dennis é pesquisador da área de Jornalismo, atuando em temas como comunicação latino-americana, popular e negra. Confira a sua entrevista

 

Em meio à onda global de protestos antirracistas neste mês de junho de 2020, fomos ouvir a opinião de um especialista sobre esse cenário. Confira abaixo a transcrição da conversa que tivemos por telefone. É possível também ouvi-la por meio de nosso Podcast dando play no tocador a seguir.

 

Gostaria por gentileza de uma análise sua em relação ao caso do assassinato de George Floyd, no mesmo período em que houve também no Brasil mais casos marcantes de violência policial contra a nossa população jovem negra, como contra o João Pedro, adolescente baleado pela polícia dentro de sua casa. É possível pensar numa luta antirracista que não passe pela necessidade de alguma reestruturação nas polícias militares brasileiras?

Prof. Dennis de Oliveira. Foto: acervo pessoal

Prof. Dennis: Eu acho que a reestruturação das polícias militares brasileiras é uma questão fundamental. Uma das coisas que marcam a diferença da opressão racial no Brasil e nos Estados Unidos – e isso é importante a gente refletir, pois há muita discussão em relação a por que haveria uma menor mobilização da população negra no Brasil em relação a dos EUA, é por conta do caráter militar das polícias no Brasil. Nos Estados Unidos, boa parte da polícia anda desarmada. Inclusive esse é um dos motivos do assassinato do George Floyd ter sido feito por estrangulamento, e há vários outros casos de asfixia das pessoas por policiais. No Brasil a gente vê fuzilamentos sumários, mortes por armas de fogo. Diante de uma situação como essa é muito mais temeroso uma população revoltar-se contra a violência policial. Há resistência, mas as condições aqui são muito mais complicadas. É inimaginável encontrar uma situação como a que ocorreu nos EUA, dos policiais se ajoelharem e pedirem desculpas. No Brasil essa lógica militar faz o policial entender que ela é treinada para a guerra, a concepção da corporação é essa. Então ela vai para a rua não para garantir a segurança do cidadão – que deveria ser o objetivo da polícia – mas sim uma guerra. O cidadão é um potencial inimigo dela. Está em sua própria formação, e no histórico do Brasil de 300 anos de vigência da escravidão, que ela foi fundada para perseguir os escravizados que fugiam das senzalas. O regime militar impôs essa doutrina de segurança nacional, buscando constantemente um inimigo interno. Se nos anos 1970 eram os chamados “comunistas”, hoje o inimigo é a população negra da periferia. Não é possível pensar numa luta antirracista que não pense nessa mudança na estrutura da polícia militar brasileira. E isso já aconteceu, o movimento negro brasileiro constantemente coloca isso em pauta, desde os anos 1980. Há projetos de emenda constitucional em tramitação no congresso de acabar com essa concepção militar, tendo uma polícia única de caráter civil, não militarizada. Entretanto observamos que há uma resistência muito forte contra isso em nome dessa narrativa não só da extrema direita brasileira, mas também mas no próprio seio da sociedade.

 

Como o senhor avalia a urgência dos protestos que se deram nos EUA, em meio aos riscos da pandemia de coronavírus? Acredita que a polícia brasileira tenderia a ser ainda mais violenta que a estadunidense e haveria uma repressão maior caso os protestos tomassem/ tomem aquela magnitude em nosso país?

Prof. Dennis: Eu acredito que a polícia brasileira tende a ser mais violenta. Ao observar os casos nos protestos contra o fascismo, que levam junto a bandeira do combate ao racismo, onde também há por outro lado protestos com pautas antidemocráticas, fechamento do congresso etc, é possível observar o comportamento da polícia, muito mais tolerante com os manifestantes antidemocráticos, que têm desde o início da quarentena desrespeitado as regras de isolamento social. Uma cena emblemática disso foi uma manifestante antidemocrática com um taco de baseball numa situação de conflito iminente, e o policial a retirou de lá de forma tranquila, nem ao menos apreendendo a arma branca da manifestante. A polícia deu uma resposta bem esquisita de que “só seria arma se ela a utilizasse”, mas ninguém se pergunta por que ela foi com um taco de baseball na Avenida Paulista. Enquanto isso o caso do Rafael Braga, que foi preso em uma manifestação por ter um pote de desinfetante dentro de sua mochila, que foi considerado arma. Só por aí é possível ver as diferentes formas de se abordar manifestantes negros e por outro lado os manifestantes brancos. Por isso que os protestos tendem a ser reprimidos, não vejo perspectiva de um comportamento da polícia brasileira sequer semelhante ao que ocorreu na maioria dos protestos negros recentes nos EUA no caso George Floyd, em que não houve interferência na maioria deles.

 

Como o fortalecimento desses protestos do movimento negro estadunidense e brasileiro podem se estabelecer como força política diante da atual expansão do poder da chamada extrema direita e suas pautas em diversos países pelo mundo?

Prof. Dennis: Eu entendo que por conta desses protestos dos movimentos negros nos Estados Unidos, Europa, Nova Zelândia etc, essa agenda antirracista tende a ocupar o centro da agenda política internacional. No Brasil, um país em que 54% da população se considera negra, e marcado por quase 2/3 de sua história pela presença da escravização de africanos e afrodescendentes, essa temática antirracista tende a ser bastante explosiva. Eu sempre digo que as últimas palavras do George Floyd sendo estrangulado pelo policial, “eu não consigo respirar”, é uma síntese do sentimento da maior parte da população negra no mundo inteiro. Nós não conseguimos respirar, não só por conta de um eventual estrangulamento de um policial, mas também não se consegue respirar por conta do desemprego, da miserabilidade, por conta da expansão desenfreada do coronavírus nas periferias por ausência de políticas públicas. Enfim, uma série de questões estruturais e sociais que levam essa população a estar com esse sentimento de sufocamento, a tendência é a de explodir os protestos no mundo inteiro. Então é impossível desconsiderar a centralidade dessa agenda antirracista nos debates políticos mundiais. Eu vejo que essa luta contra a extrema direita e o fascismo ela só vai ter consequência efetivamente se tiver articulada com essa agenda antirracista.

 

Qual o papel da grande mídia brasileira na denúncia do racismo estrutural em nosso país? Acha que recentemente ela vem cumprindo seu papel de informar e conscientizar a população?

Prof. Dennis: A mídia de comunicação de massa tem uma condição muito complicada quando vai discutir o racismo porque primeiramente, como os meios de comunicação de massa hegemônicos no Brasil tendem a se conformar com estruturas sociais consolidadas, estrutura social de desigualdade, em que há uma matriz colonial de poder, a temática do antirracismo aparece de forma episódica e pontual. Então é evidente que os comportamentos preconceituosos, ações mais visíveis e absurdas de racismo e preconceito são denunciadas pelos meios de comunicação de massa. Então observamos que essa temática e agenda antirracista que vem tendo essa visibilidade no mundo todo, tem também pautado parte do noticiário da mídia hegemônica, isso é um fato, observamos essa cobertura. Entretanto eu vejo que uma cobertura mais consequente para o combate ao racismo estrutural ela tem que ir um pouco além. Por exemplo numa mudança de postura quando se há cobertura das ações policiais nas periferias, nós observamos ainda a presença muito grande de noticiários policialescos, com essa temática da segurança pública sendo trabalhada de uma forma sensacionalista, então ainda há programas apelativos com esse tipo de viés, que muitas vezes acabam condenando a priori pessoas suspeitas, ou pessoas que a polícia acha que é suspeita. Grande parte dessas pessoas são negras, e nesse sentido acabam reforçando o estereótipo do negro como criminoso e isso é uma questão importante. O segundo ponto é que prevalece ainda uma branquitude normativa na mídia hegemônica, a maior parte dos articulistas, jornalistas, são pessoas brancas. Embora tenha tido um pequeno aumento de pessoas negras nos meios jornalísticos, mas ainda é minoritário. A visibilidade negra é pequena. E terceiro ponto é que há uma má vontade da mídia hegemônica em cobrir as agendas do movimento negro/ antirracista. Por exemplo, anualmente o movimento negro realiza dois eventos importantes, a Marcha de Mulheres Negras em julho e a Marcha Pela Consciência Negra em novembro, e esses eventos importantes anuais são totalmente ignorados pela mídia hegemônica. Só para efeito de comparação, por exemplo, a cobertura da parada LGBT ela tem muito mais visibilidade do que essas marchas organizadas pelo movimento negro que trazem essas pautas que estou comentando nessa conversa. Essa discussão da violência, da opressão racial nas periferias é uma pauta que já há 30 ou 40 anos o movimento negro tem declarado, discutido, apresentado soluções, há projetos de lei em tramitação em congresso, mas isso não faz parte da agenda política da mídia hegemônica, não se cobre essas ações do movimento negro. Ainda se trata o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, como um dia festivo, de comemoração e não como um dia de luta, porque esse foi o objetivo que o movimento negro apresentou para se celebrar o 20 de novembro. Assim como a própria cobrança de reportagens de políticas de ações afirmativas, quando foi implementada as cotas raciais nas universidades nos últimos tempos, houve uma discussão com opiniões favoráveis e contrárias, a mídia pautou uma cobertura baseada em opiniões mas não houve reportagens sobre isso, temos um tempo significativo de implementação dessas cotas e pouquíssimas reportagens trazendo o acompanhamento disso, quem são os alunos, como eles estão, como foi o impacto na vida dessa população que conseguiu acessar a universidade, o que a universidade teve que fazer para acolher esses alunos. Assim como a Lei 2639, que torna obrigatório o ensino de história da África e Cultura afro-brasileira na educação, fazem 17 anos que temos essa lei e ela é pouco aplicada nas escolas e não há essa cobertura/ cobrança por parte do jornalismo da mídia hegemônica das autoridades que podem implementar essa lei. A legislação continua desconhecida pela maior parte da população. Além disso há também uma ausência de uma discussão dos impactos sociais de determinadas medidas econômicas, quando foi aprovada a reforma da previdência em que houve um coro uníssono da mídia defendendo essa reforma, a implantação da idade mínima para aposentadoria, pouco se refletiu que essa medida terá impacto significativo para a população negra, uma vez que a longevidade da população negra é muito inferior à da população branca, por conta das condições de vida, então há possibilidade de que a maioria da população negra não receba a aposentadoria. A mídia hegemônica trata o racismo apenas na esfera do preconceito racial, violência etc, mas a dimensão do racismo estrutural que não se limita apenas às ações explicitas de preconceito mas em todas estruturas de desigualdades sociais, isso é ausente na mídia, assim como as ações do movimento negro.

 

Reportagem: Rodrigo Rosa