Alumni em destaque: Amyr Klink

Em 1984, atravessou o Atlântico sozinho num barco a remo, hoje encara outro tipo de isolamento social, por conta da pandemia de covid-19

 

Se preferir, confira na íntegra o áudio da conversa que tivemos por videoconferência. É só dar o play no tocador abaixo para ouvir o nosso Podcast.

 

Navegador, escritor e também economista. Formado em 1978 na Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP), Amyr Klink foi o primeiro a cruzar o Oceano Atlântico a remo, em 1984, o que gerou a escrita de um livro contando sobre aquela sua experiência tão desafiadora. Muito experiente das navegações, várias delas solitário, conversamos sobre o atual momento, em meio à pandemia que deixou cidades inteiras ao redor do mundo com suas populações em isolamento social. Além do relato de alguns momentos de suas viagens, as lembranças de sua formação acadêmica e a maneira como a USP marcou sua vida.

 

Amyr Klink em nossa conversa por videoconferência

 

Da sua viagem em 1984, foi lançado o livro “Cem Dias Entre Céu e Mar”. É possível de alguma maneira traçar um paralelo com o isolamento social da pandemia atualmente? Este isolamento também tem servido para despertar sua criatividade ou a sensação é completamente diferente? Como lidar com o estresse desses dois tipos de isolamento?

Amyr Klink: Tem dois aspectos pra responder a sua pergunta. O primeiro foi a importância da minha experiência acadêmica na USP. Fui muito crítico do curso que fiz na FEA, porque a gente tinha muito poucos projetos a serem executados. Mas anos depois eu percebi o quanto essa experiência foi importante. Fui remador durante 6 anos na raia olímpica da USP, pelo Clube Esperia, que tem uma garagem na raia. Naquele tempo de remador que surgiu a oportunidade de criar um projeto real, com a travessia a remo no Atlântico. Eu não sentia estar realizando um sonho ou superando as minhas limitações e essas bobagens de auto-ajuda, eu estava feliz porque eu executaria o projeto da travessia. Eu sentia muita falta, na época da graduação, de fazer um projeto ousado, polêmico, complexo e poder executá-lo. A grande diferença em relação ao que estamos vivendo agora é que não sabemos se estamos de fato cada dia mais perto de nosso objetivo. Então a gente está vivendo um momento único na história da humanidade, em termos de hiperconectividade, nunca estivemos tão conectados mas a gente está sentindo na pele o quanto esse exercício do confinamento pode ser estressante, por mais conectados virtualmente que estejamos. Tenho vários amigos que estão bem estressados com essa experiência, que são acostumados a lidar com muita gente, conversar, bem humorados e que estão sofrendo diante dessa reclusão, principalmente em relação à indefinição de quando acaba.

 

Amyr no barco I.A.T., utilizado na travessia do Atlântico Sul em 1984. Foto: divulgação

 

Como essas viagens mais solitárias mexeram com sua saúde mental, como você fazia para lidar com seus medos e ansiedades? E por outro lado, como aqueles períodos sozinhos lhe ensinaram a lidar melhor com as situações que apareciam e você tinha que resolver no meio do mar?

Amyr Klink: Bom, o medo é um dos problemas que você tem que resolver. E é um problema que você não elimina, você aprende a conviver com ele. Antes de fazer a primeira grande experiência em solitário, que foi uma viagem de 22 meses, eu conversei com muitos velejadores franceses que haviam tido experiências em dupla.  Quando eles terminavam uma experiência longa de isolamento, mas não totalmente solitária, era a vontade de repetir a viagem, porém sozinhos. A França tem essa cultura das viagens oceânicas longas e solitárias. Aquilo foi atraindo a minha curiosidade. E a primeira vez que eu fiz uma experiência longa assim, passei 640 dias no mar, eu percebi algo engraçado, quando você assume todas as tarefas que algum provedor cuida pra você – como cuidar do esgoto da casa, energia elétrica, distribuição de água, às vezes até a comida você só encomende. Quando você se transforma no seu único provedor, você começa a reconhecer essas pessoas que trabalham pra gente, além de o tempo no mar passar numa velocidade impressionante, quando se está ocupado. Foi engraçado quando acabou o verão, foi embora o último navio, o mar congelou, e eu sabia que só sairia de lá 9 meses depois, deu um frio na barriga mas imediatamente começaram as inúmeras tarefas que eu tinha que resolver de manutenção, comida, aliviar os cabos de atracação, tirar a pressão do gelo, neve do convés, aí o que aconteceu foi que de repente era junho, logo setembro, o sol voltando, e eu percebia que começava a ficar até atrasado. Então aquela foi uma experiência contundente mas muito gratificante.

 

Outro aspecto deste seu livro que me chama atenção é a calma que você tem que manter diante de situações que ocorrem em alto mar. Como acha que é possível manter esse auto controle?

Amyr Klink: Tem um aspecto interessante da vida num barco que é você viver num ambiente de imprevisibilidade, mas onda há absoluta clareza e certeza de que se você errar, morre. Eu acho que essa certeza das consequências nos educam de uma maneira impressionante. Eu lembro que eu tinha um amigo em Lüderitz, na Namíbia, e antes de eu partir para aquela viagem atlântica ele perguntou se eu queria levar algumas cervejas. Eu falei que não, porque é muito peso e pouco álcool, se for levar é prefirível levar algo muito forte. Esse meu amigo é neto do Baden-Powell, fundador do escotismo, e ele tem uma loja de bebidas naquela cidade, então ele me arrumou 5 garrafas da bebida mais forte que existia na loja dele. No meio da travessia, celebrando a metade do Atlântico, num domingo de calmaria, fui tomar um gole e me fez muito mal. Fiquei com medo, perdi a segurança, então não tomei mais nada. O engraçado é que quando eu cheguei na Bahia, meu barco foi pro segundo distrito da Marinha, onde eu pedi pros marinheiros darem uma limpeza no porão do barco. Quando retornei ao barco no dia seguinte, para fazer uma revisão, descobri que eles acharam as garrafas no porão. Era meio dia e pouco e eles estavam completamente bêbados. Tomaram achando que era vinho ou algo assim, mas era um absinto fortíssimo.

 

Várias de suas viagens foram sozinho, mas em outras você viaja com tripulantes. Quais as diferenças entre as duas situações?

Amyr Klink: A experiência de navegar sozinho ou em tripulação muito reduzida é que ela exige uma demanda física e de competências muito grande. Mas há uma tranquilidade porque você é completamente condutor da situação. A experiência que não quero ter e que vários amigos meus tiveram é a de estar com uma tripulação grande, às vezes não tão competente e poder acontecer um acidente, aí você sente todo o peso da responsabilidade. Então as viagens mais difíceis pra mim foram as que levei tripulantes ou a minha família, com crianças, filhos de amigos nossos. Estar em grandes latitudes, onde ninguém brinca, em meio o gelo, com ondas muito grandes e ver um bando de crianças correndo no convés é uma sensação absolutamente apavorante. Ali cai a ficha da responsabilidade que você tem. O meu currículo que me orgulha bastante não são os recordes, viagens inéditas, mas o fato de que das mais de 40 viagens pra Antártica, mais da metade dessas eu viajei com tripulantes e eu nunca machuquei nenhum deles, por menor que fosse o acidente. E a frequência de acidente nesse meio infelizmente é muito grande, por mexermos com tensões muito grandes de cabos, roldanas etc.

 

Amyr em uma de suas viagens à Antártica. Foto: divulgação

 

Como foi a passagem pela USP, o que mais te marcou daquele período? De que maneira profissional utilizou o conhecimento acadêmico adquirido na USP?

Amyr Klink: Embora eu tivesse discordâncias em relação ao conteúdo do curso de Economia eu acho que a experiência com os professores que tivemos na FEA foi incrível. Mais do que grandes professores, foram grandes economistas, com uma grande missão política. Carlos Viacava, Affonso Celso Pastore, João Sayad, Delfim Netto, Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Suplicy. Além dos professores, foi muito intensa a própria experiência acadêmica, e a convivência com colegas, como Aloizio Mercadante, vários outros economistas importantes que foram meus colegas. Acho que essa experiência me ensinou muito a aprender a ouvir aquilo que eu não sabia fazer. Adoro engenharia, eu lido com várias questões das instalações náuticas etc, discuto com qualquer engenheiro naval da Escola Politécnica.

“E isso eu aprendi nos anos que passei na USP. Você aprende não a administrar negócios e dinheiro, como a gente aprendia no mercado, mas a administrar competências. Isso ajudou muito para o que eu faço hoje. Hoje a gente tem um corpo de pessoas muito competentes que fizeram trabalhos inéditos no mundo que nenhum outro estaleiro no mundo fez e eu acho que o mérito dos resultados alcançados e dos barcos feitos para clientes foi essa capacidade de administrar competências diferentes e isso é um legado que eu recebi da Universidade de São Paulo. Achei interessante o convite que você fez para falar sobre esse assunto pois temos um problema cultural no Brasil que é essa desconexão do ex-aluno com sua própria universidade, coisa que não acontece nos Estados Unidos, por lá acontece quase que uma dívida do ex-aluno com a instituição que o formou. E acho que tá na hora de fazermos isso. A USP hoje tem vários problemas que considero ruins mas tem vários méritos que considero absolutamente ímpares e acredito que a maneira de resolver problemas de orçamento para pesquisa, depende muito dos alunos e não do corpo docente, retribuir pra universidade a partir daquilo que eles ganharam.”

Eu admito que eu falhei nesse sentido mas gostaria muito de poder retribuir tudo aquilo que conquistei pra Escola que me formou.

Além da convivência e discussões com grandes economistas – o que eu admito que não reconheci a importância na época, mas foram muito importantes para tudo que eu faria nos anos seguintes – foi a convivência também com os colegas de remo. Pessoas com dificuldades econômicas, que treinavam na raia mas que não tinha acesso a estudar na USP, foi também um aspecto importante na minha formação. Adorei a experiência tanto que concluí o curso mas continuei ainda mais 2 anos remando na Raia Olímpica da USP, até começar a trabalhar.

 

Amyr Klink. Foto: divulgação

Como se dá o seu processo de escrita? Quais são suas influências literárias?

Amyr Klink: Depois que eu terminei Economia, fiz um curso complementar de administração, fora da USP. Acabei mudando para Parati e morei muitos anos lá. É um lugar que tem uma conexão muito íntima com o mar mas eu nunca me atentei para elas. Eu descobri a história das viagens polares, relatos impressionantes, foi por meio dos livros. Eu me apaixonei pela literatura, fiz um curso de literatura francesa, que me abriu para esse universo literário.

“Na USP talvez uma parte extremamente importante do que aprendi não estava ligada exatamente ao conteúdo de economia, mas a tarefa de me expressar com clareza, de escrever os trabalhos.”

E eu descobri que eu tinha não uma habilidade, mas sou muito exigente para escrever. Não gosto de qualquer texto, tenho sérias divergências com parte dos profissionais da escrita, se você pega os jornais de grande circulação em São Paulo é impressionante como os textos hoje em dia são ruins, são textos de baixíssima qualidade literária. E o Brasil tem autores absolutamente exuberantes, inclusive muitos jovens. Em um barco você é obrigado por lei a fazer um diário, mas isso não tem nada a ver com um livro, eu nunca escrevi um livro num barco. Um diário é uma coisa maçante e chata de ler, mecânico, cheio de números. Mas  eu aproveitei esse hábito de fazer os registros para depois das viagens escrever e acredito que fui bem sucedido. Os livros hoje não são mais meus, o “Cem Dias Entre Céu e Mar” está com mais de 200 edições há mais de 30 anos. Como se fosse um filho que você faz e joga no mundo. Talvez a maior alegria familiar que eu tenho é que minha mulher conseguiu incutir esse hábito da leitura e escrita nas minhas filhas. Temos 3 meninas, e as 3 tem estilos completamente diferentes, mas elas são muito exigentes com a escrita, principalmente a Tamara, que está na França. Acho que é uma característica que deveríamos explorar mais no Brasil e no nosso sistema de ensino, a de escrever com concisão, humor e conteúdo. Gosto muito e tenho muito respeito por quem vive da palavra escrita, com qualidade literária.

 

Reportagem: Rodrigo Rosa