Entrevista com Emilio Haddad, ex-aluno e docente aposentado da USP

Enquanto estudante de graduação na época da ditadura, Emilio relata que soube de colegas de USP que foram fichados, exilados, torturados e até mortos. O que o fez buscar justamente o ambiente contestador da Universidade da Califórnia em Berkeley para seu mestrado. Assistiu na cidade ao show da lendária banda hippie Grateful Dead. De volta, cursou o doutorado na FAU-USP já em outro cenário político

Filho de imigrantes, que já moravam no Brasil, Emilio Haddad nasceu no Líbano quando seus pais estavam em visita a familiares. Quando estava para completar um ano, retornaram ao Brasil. Frequentou um tradicional colégio particular, em São Paulo. Na Universidade de São Paulo, graduou-se em Física, como ele mesmo disse, por paixão, e Engenharia Civil na Escola Politécnica, por vocação. Cursou ambas entre 1966 e 1970. Ainda na USP fez o doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo entre 1980 e 1987, com a tese intitulada “Sobre a divisão de cidade em zonas homogêneas: aplicação para o município de São Paulo”. Fez estágio no IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas, enquanto estudante de graduação, em análise de sistemas, tema que o levou a estudar, antes da Universidade da Califórnia em Berkeley, na Universidade de Stanford, no mesmo Estado, onde teve mais contato também com economia do setor público. Começou a trabalhar com estatísticas em cima de dados imobiliários e formação de preços de imóveis. Logo ao se formar, ainda no IPT, começou a dar aula na Escola Politécnica, até que, após o mestrado no exterior, foi convidado a ser professor na FAU em técnicas para planejamento urbano.

Ainda no período da graduação, Emilio conta que o ambiente acadêmico da USP sempre foi de contestação à ditadura e de luta pela redemocratização.

“A gente presenciava coisas de repressão muito óbvias. Teve uns colegas que até foram mortos… Outros entraram na guerrilha. E tinha alguma presença do regime aqui dentro. Alguns professores foram vítimas de aposentadoria compulsória, o próprio Fernando Henrique Cardoso, né, que acabou presidente… Na FAU, três professores que tinham vínculo com o Partido Comunista foram aposentados. O CRUSP era um centro de organização do movimento estudantil, as passeatas e tudo mais, saíam daqui.”

Sua ida à Califórnia para fazer pós graduação associou seu interesse em se aperfeiçoar num centro avançado com a atração pela ebulição cultural e política distante da censura e da repressão que ocorriam na vivência universitária por aqui. Lá, ao contrário, ele conta, praticamente tudo era permitido. Enxergava o movimento de contestação californiano em duas vertentes, um lado os hippies, algo mais voltado para a questão cultural, música, influências de filosofias orientais etc. Outra, mais política, de manifestações contra a guerra do Vietnã, por exemplo. Por ter chegado nos Estados Unidos em 1972, um pouco depois do auge do movimento em 1968, pegou o fim da efervescência cultural, mas ainda teve a oportunidade de assistir a um show do Grateful Dead na cidade de Berkeley.

         Sobre o que foi a pesquisa de doutorado na FAU-USP e o que são zonas homogêneas?

De volta ao Brasil para seu doutorado, explica que a partir da pesquisa de “origem e destino” feita em 1977 pela Companhia do Metrô, desenvolveu-se um modelo analítico das relações entre o subsolo e os vários modos de transporte. Este modelo precisava de dados sobre o valor imobiliário e nesta parte então entrou a pesquisa de Emilio. Para a fundamentação teórica, ele aplicou o que tinha aprendido no seu período no exterior em relação a essa divisão em zonas homogêneas que, acredita, é dos problemas fundamentais da geografia analítica, a divisão territorial e o processo taxonômico.

A partir de 1983, no início do contexto da redemocratização, no governo Franco Montoro e prefeitura de Mário Covas, Emilio Haddad assumiu a direção da COHAB-SP, companhia de planejamento de casas populares, até 1986 quando assumiu o cargo de direção da Prefeitura da Cidade Universitária da USP. Enquanto neste cargo, concluiu sua pesquisa de doutorado, com o trabalho da determinação das zonas homogêneas – resultado da integração de zonas menores. Aplicou então os conceitos teóricos oriundos da geografia para dar o enquadramento acadêmico necessário para sua tese.

         O problema habitacional em São Paulo nos anos 1980 e atualmente…

O professor opina que uma diferença significativa é que naquela época havia menos favelas. Na época do Covas, que tinha uma ligação com a Igreja, existiam secretarias voltadas a ações sociais, que davam suporte para mutirões, recursos para compra de materiais de construção para os próprios moradores e essas equipes das favelas erguerem suas moradias. A COHAB-SP até então não participava desse tipo de auxílio. Ela focava na questão da construção de conjuntos habitacionais que eram destinados a uma lista. Já em sua gestão, a COHAB recebeu fundos do BNH para esses grupos já previamente organizados. Ele acredita que medidas que não sejam diretamente na questão da habitação podem ser eficientes para a melhoria de vida dos trabalhadores, por exemplo, o incentivo para a diminuição do preço do material de construção, projetos em que as populações morem mais próximas de seus empregos etc.

Mais recentemente, após a sua aposentadoria, Emilio desenvolveu um projeto para estudar o que mudou no mercado imobiliário em Paraisópolis nos últimos dez anos. Para o docente, a região é um mercado imobiliário como qualquer outro. Não há mais a figura de uma pessoa sem teto que constrói sua própria moradia precária e sim pessoas que investem naquilo, compram um pedaço do terreno, constroem uma casa e depois a alugam. Opina, ainda, em relação aos movimentos populares, que enxerga como legítima a função de pressão social. Muitas dessas pessoas trabalham em mutirões etc. Entretanto, relata, por conta dos movimentos terem motivação política e cada movimento estar ligado a um partido, muitas vezes eles não dialogam entre si. O que acaba, em sua visão, atravancando o processo de negociação.

         Retorno à UC Berkeley para pós-doutorado e aplicação destes conhecimentos na FAU…

Quando em 1989 retornou para pós-doutoramento na Universidade da Califórnia em Berkeley, especializou-se em planejamento urbano. Emilio conta que por ter sido um bom aluno na Universidade, ele foi convidado para dar aula lá sobre problemas habitacionais na América Latina. Estudou o processo californiano de valorização das periferias, com construções de grandes casas, com seus shoppings etc, o que acabou desvalorizando o centro das cidades. E lá houve a criação de empresas para revalorizar regiões centrais, contratando alunos formados nesta linha de pesquisa, mais do que apenas economistas. Quando voltou ao Brasil, propôs a criação dos cursos de pós na FAU de introdução ao mercado e política imobiliárias. Coordenou então o MBA da FUPAM, fundação de apoio à FAU, em desenvolvimento imobiliário. Comenta que ainda costuma encontrar ex-alunos que relatam que se adequaram bem ao mercado de trabalho, tendo estudado este segmento.

Perguntado sobre a grande verticalização da cidade de São Paulo em alguns bairros, o professor demonstrou ser uma consequência meio inevitável, pois acredita que não haja muitas maneiras de expandir a cidade, porque custa caro construir maiores vias de acesso etc, a verticalização acaba sendo uma organização econômica, de maneira que seja bem feita, com prédios próximos a metrô, marginais Pinheiros e Tietê etc. Pensando também na lógica da proximidade entre residência e trabalho. Entretanto, acredita que a estrutura governamental de controle de planejamento é muito fraca. As discussões em relação ao Parque Augusta, por exemplo, foram muito mal conduzidas por parte da prefeitura, e que a proposta inicial das construtoras de fazerem e manterem o parque, ele não considerou ruim. Quanto a uma possível supervalorização dos valores dos imóveis em algumas áreas da cidade, é um fato, porém acha que ocorria mais antigamente, atualmente ela tende a responder ao mercado. Há imóveis vagos na cidade, pois o valor estaria alto, e o mercado imobiliário está ainda em um momento de baixa.

         Questão ambiental…

Avalia que a criação no Estado de São Paulo de um órgão ambiental, a CETESB, foi algo muito positivo. Opina que houve um controle melhor, sem ela seria muito mais predatória a ocupação da cidade. Relembra que participou de reuniões de zoneamento industrial representando o IPT. Elogia a proibição na cidade de certos tipos de indústria como de pólvora e siderúrgica. Para ele, entretanto, em outros assuntos a questão ambiental foi muito mal conduzida, em especial as marginais, a retificação dos rios que causa alagamentos. Citou bons exemplos como um em Seoul, que antes poluídos e cercados por concreto, agora foram revitalizados e foram devolvidas a eles as margens para o devido escoamento da água.

 

Relembra, por fim, que era um grande privilégio estudar na Escola Politécnica em sua época. Havia 360 vagas, menos do que hoje, e sem políticas de inclusão, em geral apenas pessoas com melhores condições de vida as ocupavam. O ensino considerou tão bom que lhe colocou em condições de igualdade diante dos colegas de pós-graduação em Berkeley e Stanford, mesmo os vindos de países com ensino superior de qualidade como por exemplo o Japão ou França, conta. O que atrapalhou foi, de fato, o contexto político da ditadura. O que o levou a querer participar das organizações dos estudantes, vindo a ser presidente do Centro Acadêmico da Engenharia Civil e a dirigir o jornal “Poli Campus”.

Aposentou-se das salas de aula há cinco anos. Entretanto, ainda frequenta a USP, visita exposições de artistas ex-alunos da FAU, e inclusive participa de bancas de pós na Universidade.

Texto e foto: Rodrigo Rosa