Alumni em destaque: Carol Pimentel

Responsável pela publicação da Marvel no Brasil, a física e tradutora conta sua trajetória

 

Ana Carolina Alves de Souza Pimentel, mais conhecida por Carol Pimentel, é ex-aluna de Licenciatura em Ciências Exatas no Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP) e de mestrado em Estudos da Tradução na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Editora-chefe da Marvel (Homem-Aranha, X-Men, entre outros) no Brasil, ela recentemente ganhou um importante prêmio na área, o “Troféu HQ Mix 2018”, como melhor roteirista revelação. Com os quadrinhos ela acumula as funções de editora, tradutora, e também roteirista. Ela nos conta nesta entrevista como foi trocar de área, vindo da Física, e como seu mestrado na FFLCH lhe ajudou a atingir o sucesso na carreira, e também como foi lidar com mudanças mesmo na etapa da graduação, em que passou por outros cursos até se formar no IFSC e trabalhou por um tempo como diretora da Escola de Astrofísica de São Paulo.

Foto: acervo pessoal da ex-aluna

 

Como surgiu seu interesse por quadrinhos? Sempre se interessou pelos heróis da Marvel? Você sempre imaginou que poderia trabalhar com isso?

“Eu desenvolvi a paixão pelos quadrinhos ainda criança. Acho que como todo pequeno no Brasil, começamos a ler os quadrinhos da Turma da Mônica e depois vamos aprendendo sobre leitura, desenvolvendo o gosto pela coisa e aí não tem mais jeito. Nos anos 1980 era muito comum os pais levarem os filhos às bancas de jornais e eu não escapei disso, ainda bem…

Eu sempre gostei muito dos quadrinhos da Marvel e me identificava muito com um certo jovem que perdeu o tio e tinha longos diálogos internos, não tinha muitos amigos na escola e sofria o que hoje chamamos de bullying. Aquilo preenchia meu mundo e eu sempre acabava lendo outra história, pegando outro quadrinho e conhecendo outro personagem que depois me acompanharia por anos. Na época não era cool ler quadrinhos, pelo contrário, ser nerd era algo terrível.

Guardo na memória – mas o certo deveria ser nas costas – a quantidade de puxões no sutiã que levei por estar lendo quadrinhos, e mesmo assim, nunca me intimidei e segui lendo. Os anos se passaram e a vida acadêmica me afastou um pouco das HQs, afinal o tempo que passei debruçada sobre os livros do Tipler e do Feynman enquanto estava na graduação não me deixavam tempo livre para saltar pelos prédios nas aventuras do Homem-Aranha ou ouvir o SNIKT! do Wolverine.

Foi mais ou menos nesta época que me dei conta de que o herói que me levou a estudar Física – o Homem de Ferro – era infinitamente melhor que eu e eu jamais viria a construir aquelas armaduras incríveis dele, então fui para o “espaço profundo” e mergulhei de vez na Astronomia sem pensar que algum dia voltaria para minhas antigas aventuras com meus heróis favoritos.

Na verdade, nunca tinha pensado que trabalharia com quadrinhos. Não sei desenhar e até o momento não tinha pensado em escrever roteiros ou algo assim. O mais perto que conseguia chegar deles foi em uma exposição de ficção científica que pensei em montar na Escola de Astrofísica de São Paulo e que não veio a acontecer… Mais uma vez eu me afastava deles.

Como trabalhar com HQs? O que a gente faz? Eu não sabia direito e então resolvi buscar a universidade mais uma vez. Coincidentemente, aquele era o primeiro ano em que a FFLCH abria uma turma de Estudos da Tradução para a Pós-Graduação e foi então que vi minha chance: estudar mais profundamente o que sempre gostei e produzir algo com isso.

Conversei com o Prof. Dr. John Milton e ele aceitou me orientar com um projeto sobre HQs e eu mal podia acreditar que estava me aproximando do meu sonho mais uma vez.

Algumas dúvidas surgiram sobre HQs e quando me dei por conta estava conversando com o Editor-chefe da Marvel na época. Três meses se passaram desde o nosso primeiro contato quando surgiu uma vaga para Editor Assistente que me foi oferecida – depois de alguns gritinhos eu respondi imediatamente o e-mail aceitando a vaga – e, quatro anos depois deste contato eu sou a atual Editora-Chefe da Marvel em um total de cinco anos de história de Panini. Queria criar uma máquina do tempo para contar pra Carol dos anos 1980 que aqueles puxões valeriam a pena, bastava ela continuar…”

 

Você ingressou em diferentes cursos de graduação antes de concluir a Licenciatura em Ciências Exatas na IFSC-USP? Foram mudanças de área tão marcantes quanto trocar, na atuação profissional, a Física pelos quadrinhos? Você acha importante o profissional ter a coragem de mudar de área quando não está mais satisfeito? Foi uma decisão difícil?

“Sim, eu ingressei em diversos cursos antes de optar finalmente pela Licenciatura em Ciências Exatas com habilitação em Física, acho muito difícil uma criança de 16 anos tomar a decisão do que vai fazer para o resto da vida.

Não fiquem bravos pessoal que tiver 16 ou 17 anos por eu tê-los chamado de criança, o fato é que é verdade! É muito cedo para escolhermos o que faremos da vida… é uma decisão permanente e que gera infelicidade extrema em muitas pessoas!

Se você não se sente feliz com o que está fazendo, mude. Pode parecer fácil falar, mas na verdade é fácil fazer. Basta tomar a decisão, ponderar com calma e ir traçando metas que o levem até seu objetivo.

Eu sempre tive facilidade com línguas, o que me permitiu estudar mais e mais o inglês e nunca me afastar disso. Durante a graduação eu fiz Iniciação Científica em História da Física e precisei traduzir muitos documentos de inglês e francês para entender a pesquisa e nunca me afastei da tradução desde então. Mesmo com uma graduação em outra área, sempre mantive “o pé” em outra área.

Sei que existem famílias que são mais duras e que cada caso é um caso, mas um pouco de conversa sempre ajuda na hora de mostrar a insatisfação que estamos tendo. Neste quesito preciso agradecer demais a minha família que sempre apoiou as minhas decisões, por mais malucas que elas tenham sido.”

 

Quão importante foi o mestrado para você entrar em contato com o mercado dos quadrinhos e poder ingressar nele?

“Como ex-aluna a escolha foi bem fácil. Eu já sabia o que esperar da USP e sempre acreditei na formação que recebi desta universidade, então, foi por onde decidi começar minhas buscas… Acredito que o Mestrado foi o grande responsável pelo meu ingresso neste novo mercado de trabalho, não só por ter me possibilitado o contato com um profissional da área como descrevi anteriormente, mas também por ter me feito pesquisar profundamente o assunto.

Acho que a grande sacada das especializações é o aluno aprender de fato a pesquisar, buscar a origem das informações, ver à fundo a história de construção do tema que se está estudando. Aprender a se virar sozinho é o maior ensinamento de todos, espero mesmo que as pessoas vejam como isso é importante, pois quanto mais especializados ficamos, mais abrimos portas no mercado de trabalho.

Tudo que aprendi na minha graduação anterior me possibilita compreender algumas teorias que tentam ser justificadas nos quadrinhos, melhorar a explicação dada pelo roteirista ou acertar os termos na hora da tradução. Por exemplo em algumas expressões utilizadas pelo famoso Sr. Fantástico – Reed Richards – do Quarteto Fantástico, ou o Tony Stark que vive rodeado de reatores ARC e nanotecnologia; o Dr. Bruce Banner – Hulk – que foi contaminado por raios gama entre tantos outros. Muita coisa é Física de quadrinhos – como eu costumo chamar -, mas outras são baseadas na realidade e ter conhecimento na área me ajuda muito em meu trabalho.”

Foto: acervo pessoal da ex-aluna

 

Poderia falar também um pouquinho sobre sua dissertação de mestrado na USP, que virou um livro? De onde veio a ideia para o projeto da pesquisa?

Tudo partiu do desejo de trabalhar com quadrinhos. Eu não sabia muito bem por onde começar minha pesquisa e a ideia inicial de projeto era criar um banco de dados de gírias dos anos 1960 e 1970 das HQs de época, publicadas no Brasil em materiais chamados de Bibliotecas Históricas ou Coleções Históricas Marvel. A pesquisa começou e, como mencionei anteriormente, algumas dúvidas sobre HQs surgiram e o contato com o profissional na época me abriu muitas outras portas. Sem querer acabei entrando em contato com os tradutores das revistas em quadrinhos da DC Comics e da Marvel Comics, foi então que me ocorreu entrevistá-los para poder entender melhor o dia a dia deste tradutor. As respostas foram tão interessantes que eu decidi mudar o projeto no meio do caminho e apresentar algo sobre o habitus do tradutor de HQs.

O conceito proposto pelo sociólogo Pierre Bourdieu me possibilitou compreender as especificidades às quais este profissional está sujeito e o que sua bagagem cultural lhe permite fazer. Todos os detalhes e as entrevistas estão na minha dissertação de Mestrado e aqui apresentei uma versão bem resumida de tudo isso.

Pouco tempo depois da defesa uma editora se interessou pelo conteúdo da dissertação e então decidimos resumir algumas coisas e apresentar algo mais prático para o público que se interessa em traduzir histórias em quadrinhos. O resultado desta parceria foi o livro Tradução de Histórias em Quadrinhos: Teoria e Prática que foi lançado em 2018 pela editora Transitiva.”

Dissertação de mestrado deu origem ao livro, pioneiro no mercado sobre tradução de quadrinhos

 

O grande sucesso cinematográfico da Marvel orienta as escolhas da sua equipe para que um lançamento de uma nova tradução seja junto de um lançamento no cinema? Você acredita que o sucesso das produções no cinema faz aquele público ir atrás de conhecer a história original nos quadrinhos?

“Os quadrinhos e o cinema andam lado a lado, afinal a produção das HQs é que possibilitam as adaptações de roteiros para os filmes. O curioso é que as traduções do cinema são utilizadas sem consulta ao pessoal que traduz as HQs. Por que isso acontece? Não faço ideia.

O que importa mesmo é que muita gente que não lia quadrinhos passa a se interessar pela história deste ou daquele personagem e quando a pessoa sai do cinema ela acaba indo para uma livraria ou comic shop para conhecer melhor o personagem.

Um caso interessante é justamente o do Homem de Ferro. Este personagem sempre foi considerado “linha b”, nunca foi um grande atrativo para a Marvel até que o ator Robert Downey Jr. o revivesse nas telonas dando o enorme destaque ao filme e, consequentemente ao personagem dos quadrinhos que ficou ainda mais “canastrão” e com alguns trejeitos mais marcantes depois da interpretação do ator.”

 

Sobre o exercício da tradução. Como a época influencia no estilo dela? Por exemplo, há preocupação com o uso de gírias que podem ficar datadas para o leitor daqui algumas décadas?

“Da minha parte sim. Eu me atento muito às gírias já que elas foram o início do meu projeto. Na época da pesquisa entrei em contato com um texto do Prof. Dr. Paulo Ramos que mostrava a carta de um leitor carioca e sua indignação em relação à fala do Wolverine. Este texto sempre fica em minha memória e desde que comecei a trabalhar com tradução de quadrinhos eu penso nisso. Tento evitar regionalismos, mas ainda assim, algumas gírias se tornaram canônicas nas falas dos personagens – o xará do próprio Wolverine -, que vai causar uma estranheza enorme se for trocada.

Alguns tradutores são de outras cidades que não SP e RJ e algumas vezes eu recebo textos com termos que me causam surpresa. Se isso acontece eu procuro consultar outras pessoas para ver se o termo também lhes causa muita estranheza. Se sim, eu opto pela troca por um termo mais comum e menos regionalizado, afinal estamos lidando com um país imenso.

Já no caso das Coleções/Bibliotecas Históricas eu opto por manter os termos o mais próximos o possível, senão os exatos equivalentes, para a época do quadrinho. É como se você voltasse no tempo e tivesse a experiência de ler naquela época e isso não um preciosismo, mas um cuidado, afinal os termos são os daquela época e podem ser verificados no original, então, por que não seguir o original?”

 

Ainda sobre a questão da época em que vivemos, há uma preocupação em utilizar termos mais inclusivos às minorias, ou essa é uma tarefa anterior, ou seja, mais do roteirista estrangeiro? Lembro-me de uma polêmica recente nas redes sociais de uma tradução do Demolidor que foi “acusada” de associar o vilão Wilson Fisk a um certo político brasileiro conhecido por “mito”. Como vocês lidam com a recepção das traduções?

“A questão do tradutor nas histórias em quadrinhos é que quanto menos se comenta sobre uma tradução, mais acertada ela foi. O “apagamento” do tradutor é equivalente a um trabalho bem feito.

A verdade seja dita, o leitor de quadrinhos, em sua esmagadora maioria, não verifica quem foi o tradutor da revista que está lendo, o leitor só vai procurar saber “quem foi o culpado” caso ele não concorde com algum termo apresentado na revista, caso contrário ele nem quer saber como aquele material chegou até ele. Isso sem mencionar os ideais políticos envolvidos ou não na tradução.

Na época em que o Trump foi eleito nos Estados Unidos, houve uma série de publicações colocando o candidato eleito como modificação de algum personagem canônico. Na Marvel Comics o personagem modificado foi o MODOC (Mecanorganismo Destinado A Ocisão e Carnificina) que saiu na revista Spider-Gwen Annual 1, aqui no Brasil esta revista foi publicada na Aranhaverso 15 da Panini e o personagem foi chamado de M.O.D.A.A.C (Mecanorganismo Operacional Destinado A Assumir o Comando) e não vimos nenhum jornal se preocupando com a sátira ou o presidente se importando com o que estava sendo publicado em uma página de quadrinhos.

Fato é que o tradutor deve se atentar ao original e adaptar sem qualquer tipo de opinião pessoal. No caso do “mito” a palavra se adaptava ao original e a escolha foi bem justificada nas diversas matérias publicadas sobre o assunto.”

 

Como é ser uma mulher num ambiente em que a maioria dos leitores ainda são homens? Como está o crescimento dos HQs entre o público feminino? Gosta das personagens femininas da Marvel, destacaria alguma?

“Acho que ainda é difícil que alguns leitores aceitem uma mulher “por trás” das HQs que eles tanto amam. O que me incomoda em relação a isso é que o gênero ainda seja discutido… Quando assumi o cargo fui alvo de diversas críticas e desde o início eu pedi que procurassem ver os resultados do meu trabalho e não o meu gênero, mas parece que alguns ainda não entenderam o recado…

No ambiente de trabalho eu sempre fui muito bem recebida pelos meus colegas tradutores/editores que sempre se dispuseram a me ajudar e vice-versa. Aos pouquinhos fui me tornando consultora de termos científicos e o resultado do meu trabalho pode ser visto com o cargo que assumo atualmente, acho que isso fala mais que as críticas.

As personagens femininas sempre existiram nas HQs, o que está mudando atualmente é a forma como elas são representadas.

Um belíssimo exemplo é o da Jessica Drew, a Mulher-Aranha – minha personagem feminina favorita – que foi muito bem escrita por Dennis Hopeless e ilustrada por Javier Rodriguez e publicada também na revista Aranhaverso da Panini. A sensibilidade com que ela foi representada tanto graficamente quanto no roteiro são de uma delicadeza incrível. Sempre que posso eu cito esta fase da personagem, pois muitas mulheres vão se identificar com o dia a dia dessa personagem.

O mundo dos quadrinhos está cada vez mais bem representado, seja por mulheres, seja por minorias tanto nas páginas dos quadrinhos, como no cinema – veja a animação Homem-Aranha no Aranhaverso de 2018 – que veio para mostrar como devemos representar todos os gêneros e de uma forma incrível.

Nos eventos de HQs independentes sempre vemos que o espaço vem sendo mais e mais ocupado por mulheres quadrinistas e mulheres consumidoras, isso é mágico, pois finalmente elas estão se sentindo acolhidas e não espantadas por alguns “espécimes tóxicos” que circulam por aí. Parabéns mulherada! Vocês também são bem-vindas por aqui e estão cada vez mais bem representadas.

Vou aproveitar e falar que depois de algum tempo trabalhando com quadrinhos mainstream perdi o medo de escrever roteiros e me arrisquei com uma produção que começou independente, o POV – Point of View, com roteiro meu e arte belíssima da Germana Viana. Nós começamos este projeto que foi recebido por um coletivo de mulheres maravilhosas, o Lady’s Comics (clique aqui para acessar o site), que nos permitiu começar a mostrar nosso trabalho pela internet com uma webtira semanal. O projeto cresceu e nós conseguimos publicar a HQ física pela Editora Jambô na CCXP de 2017.

Uma personagem negra, a Alice é quem nos leva por uma volta na cidade de São Paulo em tiras que podem ser lidas independentemente ou em sequência (como na HQ impressa) e que vai te levar para um mergulho na vida dos paulistanos e suas loucuras em um formato slice of life. Em 2018 eu recebi o Troféu HQMIX como Novo Talento Roteirista por esta HQ.

Acho que isso diz muito sobre o futuro das mulheres nos quadrinhos… O espaço está aberto, só precisamos explorá-lo.”

Capa do HQ. O seu roteiro foi premiado como revelação no Troféu HQ Mix 2018

 

Para finalizar, você poderia falar algum título que esteja programado para ser lançado em 2019 no Brasil? Alguma tradução da Marvel ou se você pretende trabalhar em algum novo roteiro…

“De lançamento da Panini para este ano que eu recomendo é A Vida da Capitã Marvel que saiu em fevereiro e As Guerras Infinitas que começam a ser publicadas agora em abril, outros títulos ainda estão em discussão, mas teremos mais surpresas por aí…

Quanto a novos roteiros, estou preparando duas coisinhas para tentar lançar, vamos ver o que consigo.”

 

Texto: Rodrigo Rosa