Alumni em destaque: Marcelo D’Salete

O quadrinista, com sua obra “Cumbe”, foi um dos vencedores do Prêmio Eisner, também conhecido como o “Oscar” dos quadrinhos

Foto: Rafael Roncato

Em julho de 2018, o quadrinista brasileiro Marcelo D’Salete recebeu o Prêmio Eisner, apelidado de o Oscar das histórias em quadrinhos (HQs), na categoria Melhor Publicação Americana de um Material Estrangeiro. Com graduação em Artes Plásticas na Escola de Comunicações e Artes (ECA) em 2006 e Pós-Graduação em Estética e História da Arte (2009), ambas pela USP, ele conta que seu interesse por esse meio vem de longa data. “Eu sempre gostei da área artística, desenho, escultura e literatura. Eu também fiz um curso técnico na área de design gráfico e resolvi me aprofundar nessa área no curso universitário”.

Para Marcelo, o encantamento pelos quadrinhos se deve a sua maneira diferenciada de contar histórias. “Há a junção de dois elementos que eu aprecio: a capacidade de criar narrativas e a arte gráfica. Eu tinha, desde o início, um interesse muito grande por esse e tentei, de certo modo, aprofundar essa experiência criando as minhas próprias HQs”.

O início de sua carreira na área se deu na Universidade de São Paulo, por meio da Revista Quadreca. Essa e outras vivências dentro do ambiente universitário foram fundamentais para a sua vida, acredita ele. “A USP foi muito importante porque além da oportunidade de ter ótimos professores e fazer o curso de artes plásticas, eu pude também conhecer outras unidades e  fazer aulas em diversos outros locais. Acho que isso engrandeceu muito a minha formação”. Após esse período, Marcelo ainda trabalhou em outro veículo, fora da Universidade, antes de começar a publicar seus próprios livros.

O primeiro deles foi “Noite Sem Luz”, em 2008. Depois, ainda vieram “Encruzilhada” (2011), o  vencedor do Prêmio Eisner “Cumbe” (2014), e “Angola Janga” (2017). Todos eles têm em comum a temática da identidade negra, cuja presença no mundo dos quadrinhos ainda é pouca. “Sempre fui leitor de HQs e, em determinado momento, percebi que havia uma ausência gritante de narrativas abordando personagens negros na nossa história. Muitas das que existiam abordavam apenas figuras midiáticas, como o Pelé. Eu sentia falta de falar de tópicos que estavam nas minhas discussões do dia-a-dia, que passavam pelo Núcleo de Consciência Negra, por diversos outros coletivos e cursos. Eles acabaram chamando a minha atenção e fazendo com que eu me dirigisse a contar histórias sobre esse tema”.

Prêmio Eisner recebido em julho de 2018 Foto: Divulgação

As primeiras obras de Marcelo tratam da realidade contemporânea, abordando assuntos como racismo e desigualdade, com base em acontecimentos verídicos.“Essas histórias partem muito de experiências minhas e de colegas, de situações que observei na rua ou li em jornais. “Encruzilhada”, por exemplo, fala sobre o caso do Januário,segurança da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, que, em 2009, ao ser abordado estacionamento de um hipermercado,  foi espancado porque acharam que ele estava tentando roubar o próprio carro. Eu acrescentei vários outros elementos ficcionais ali, não é só esse fato que conduz a narrativa. É ele misturado com outras questões e experiências ficcionais e realistas”.

Já os seus dois livros mais recentes falam sobre o período do Brasil Colônia. Neles,  temas como escravidão e resistência negra se fazem bastante presentes. “As pesquisas iniciais do “Cumbe” e “Angola Janga” tiveram início a partir de diversas leituras sobre o período colonial. Os primeiros contatos foram os dados mais quantitativos, mas aos poucos fui chegando em histórias de casos específicos de africanos escravizados e seus conflitos. Minha tentativa sempre foi construir narrativas a partir de fatos singulares”. Outro aspecto importante de seus quadrinhos é a busca pela humanidade dos personagens. “Isso é possível  ao fazer pesquisas orientadas para o traços culturais desse povos de bantu e principalmente de povos habitantes de regiões de antigos reinos, de Angola e do Congo, de onde vieram grande parte dos africanos escravizados no Brasil. Conhecer um pouco mais sobre as crenças desses povos, sobre a arte que eles produziam foi importante para a construção desse personagens, seus objetivos e seus medos também”.

O recebimento do prêmio Eisner, “foi uma grande surpresa”, conta o quadrinista, que destaca a importância desse reconhecimento para os assuntos retratados. “A gente vê que a discussão sobre temas étnico-raciais é algo que vem crescendo pra debates que também estão presentes na televisão e no cinema. Penso que é um prêmio importante para uma obra como essa, por dar relevância a esse tipo de narrativa , falando sobre Brasil colonial, a partir de uma perspectiva em grande parte negra, e trazendo esses personagens como protagonistas e como pessoas com toda sua humanidade”.

Além de seu trabalho com HQs, Marcelo também dá aulas na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP para alunos de ensino fundamental. Em sua opinião, essa profissão é de extrema importância devido ao seu contato com as gerações mais jovens “É muito bonito ver o desenvolvimento desses estudantes no decorrer do anos, o seu amadurecimento, sua percepção das coisas. A escolha por essa carreira talvez tenha sido essa necessidade de discutir temas que eu considero relevantes, que tem a ver com a nossa história,e a  oportunidades de influir, de tentar criar novas formas de compreender a sociedade e de atuar dentro desse ambiente”.

Para cumprir seu objetivo junto aos estudantes, ele se utiliza de uma ferramenta já presente em sua vida: os quadrinhos. “Por serem um meio que junta texto e imagem, se tornam um meio muito interessante para trabalhar com esse público mais jovem. Há diferentes formas de ler um bom texto, assim como há diferentes formas de ler uma boa imagem. Esse exercício de decifrar imagens, imagens com textos e decifrar os seus possíveis significados é interessante no momento atual. Nós estamos num mundo de imagens e precisamos aprender decifrá-las. E eu acredito que a escola é algo fundamental pra fazer isso com as nova gerações e as histórias em quadrinhos colaboram com isso”.

Sua contribuição para o ensino não se restringe apenas aos alunos da Escola de Aplicação. Em setembro de 2018, “Cumbe” e “Angola Janga” foram aprovadas no Plano Nacional do Livro Didático Literário e. já no ano seguinte, serão adotadas pelas escolas públicas de Ensino Médio.